Relembre a trajetória de Cazuza no dia em que o cantor faria 60 anos
Há exatos sessenta anos, Agenor de Miranda Araújo Neto, o Cazuza, nasceu no Rio de Janeiro. O cantor, que morreria com apenas 32 anos em julho de 1990, foi uma das primeiras vítimas do universo da música a tombar em consequência da AIDS.
Apesar da carreira relativamente curta – cerca de sete anos registrados em disco divididos entre o período em que cantou no Barão Vermelho e a carreira solo iniciada em 1985 – o cantor deixou sua marca de forma definitiva na cultura nacional, e sua ausência continua sendo sentida e sua obra merecidamente celebrada.
A maior tragédia dessa partida antes da hora, é a eterna sensação de que sua obra sempre parecerá incompleta. Ao contrário de muitos artistas que nos deixam antes do tempo, mas que se vão deixando a sensação de tarefa cumprida, quando pensamos em Cazuza é impossível não pensar que ele provavelmente encontraria a sua voz definitiva na maturidade.
Isso porque o cantor sempre trafegou entre o rock e a MPB em uma época onde isso não era muito comum – uma questão que começou a ser resolvida na década de 90 – e por ele também ter um texto que muitas vezes não parecia ter sido escrito por alguém tão novo.
Barão Vermelho
Cazuza era filho do diretor da Som Livre, João Araújo, e, óbvio, cresceu em um ambiente cercado de música. Assim não surpreendeu vê-lo se enveredando pelo universo cultural carioca do início dos anos 80.
Ele entrou no Barão Vermelho, em 1981, e logo banda começou a chamar a atenção por onde passava com sua mistura de hard rock, blues e música brasileira com uma cara mais moderna. Os elogios vieram não só da imprensa – Ezequiel Neves, um dos grandes críticos da época logo apadrinhou o grupo – mas também de nomes como Caetano Veloso e Ney Matogrosso. O falatório foi tanto que acabou forçando seu pai a assinar contrato com a banda apesar dos temores que ele tinha de acusações de nepotismo.
Os dois primeiros discos do grupo não venderam muito, mas dali saíram canções que futuramente se tornaram clássicas como “Todo Amor Que Houver Nessa Vida“, “Ponto Fraco“, “Down Em Mim” e principalmente “Pro Dia Nascer Feliz“, que se tornou um grande sucesso na voz de Ney Matogrosso.
O sucesso mesmo veio com “Menor Abandonado”, o terceiro disco (1984) que colocou a banda como um dos melhores nomes da primeira metade dos anos 80 com Blitz, Lulu Santos, Kid Abelha e os Paralamas do Sucesso.
Todos esses grupos tocaram no primeiro Rock In Rio, e o show do Barão foi um dos mais marcantes de todo o festival, principalmente por eles terem tocado no dia da eleição de Tancredo Neves, que marcou o fim de vinte anos de regime militar.
A imagem de Cazuza dedicando “Pro Dia Nascer Feliz” ao novo país que estava nascendo, é uma das mais marcantes de todo o rock nacional.
Mas, quando tudo indicava que o Barão se tornaria a maior banda do país, veio o choque com a notícia de que seu vocalista estava partindo pra carreira solo – a banda seguiria com o guitarrista e parceiro Roberto Frejat assumindo os vocais.
Apesar da estreia solo ter feito certo sucesso, foi desse disco que saíram “Exagerado” e “Codinome Beija-Flor“, não se pode negar uma mudança no nosso cenário que começou a ser tomado por outras bandas como Ultraje a Rigor, RPM e a Legião Urbana.
Incerteza e renascimento
O ano de ouro do rock brasileiro, 1986, quando quase todas as grandes bandas lançaram trabalhos que se tornaram clássicos, de grandes vendagens, não viu nenhum novo lançamento de Cazuza.
Ele só lançou seu segundo disco solo, “Só Se For A Dois”, no ano seguinte já em nova gravadora e sem muito sucesso (apesar do hit “O Nosso Amor a Gente Inventa (estória romântica)“).
Foi nesse ano que a AIDS, que ele provavelmente contraiu em 1985, começou a se manifestar. A princípio ele negou a doença, que só foi ser assumida publicamente em 1989.
O trabalho seguinte seria o mais forte de sua carreira do ponto de vista lírico. “Ideologia” simboliza bem o que era o Brasil do fim dos anos 80, com Sarney, inflação gigantesca e um clima de decepção que raramente se viu desde então. Com os rumores sobre ele estar doente aumentando cada vez mais, Cazuza voltou à mídia também por motivos extra-musicais.
A turnê de divulgação do trabalho, foi uma das mais celebradas de 1988 e rendeu o álbum ao vivo “O Tempo Não Para” lançado em 1989 e, provavelmente o seu melhor registro gravado, não só por trazer a então inédita faixa-título (talvez a sua grande obra-prima) mas por também ter versões que superam as de estúdio.
Dito isso, não deixa de ser vergonhoso saber que ainda hoje, quase trinta anos depois, uma edição especial com o show completo em áudio e vídeo, não foi lançado no mercado, dada a importância do registro.
Em 1989, já visivelmente debilitado pela doença, Cazuza deu início ao que seria a fase final de sua vida. Em abril de 1989 ele apareceu na capa da VEJA onde uma foto do artista muito abatido veio acompanhada da chamada “Uma Vítima da AIDS agoniza em praça pública”, para horror do artista que fez a seguinte declaração meses depois: “Tive vontade de vomitar quando vi aquela capa da Veja. Acabei tendo um problema cardíaco e por isso passei o dia numa cadeira de rodas”.
Mesmo com a doença cobrando seu preço, o artista continuou trabalhando naquele que seria seu último disco lançado em vida. Quando saiu, “Burguesia”, um disco duplo, não foi bem recebido pela crítica, que o achou um tanto indulgente, e também não vendeu muito, até porque foi lançado em um dos piores períodos econômicos da nossa história recente. Mas ele se mostra um trabalho corajoso e sincero, ainda que com inegável clima de despedida – é difícil não se emocionar ao ouvi-lo cantar com a voz já bastante mudada e enfraquecida “o meu canto é o que me mantém vivo” – o verso que encerra, “Quando Eu Estiver Cantando“, a última faixa do álbum.
Os últimos momentos
A partir daí todos sabiam que era só uma questão de tempo até ele nos deixar. Dia sim, dia não alguém soltava o boato de sua morte, que foi confirmada no dia 07 de julho de 1990.
Desde então, a obra de Cazuza seguiu viva, às vezes com mais ou com menos evidência. Já o talento de letrista e intérprete, o seu carisma dentro e fora do palco e a coragem que teve ao assumir publicamente a sua condição de soropositivo, em uma época em que a AIDS ainda era uma doença sobre a qual pouco se sabia e envolta em preconceitos de todas as ordens, nunca foram postos em dúvida.
De tempos em tempos algum lançamento surge para colocá-lo novamente em voga, como o livro escrito por sua mãe, “Só As Mães São Felizes” de 1997 ou o belo filme de Sandra Werneck “Cazuza – O Tempo Não Para” de 2004. Hoje, 60 anos depois de nascido e 36 do lançamento do primeiro disco do Barão, percebemos como ele foi importante para a nossa música e como radiografou de forma precisa um período tão rico e conturbado do nosso país.
Ouça três canções fundamentais de Cazuza:
“Pro Dia Nascer Feliz” ao vivo em 1983 no programa “Fábrica do Som” exibido pela TV Cultura de São Paulo
O clipe de “Ideologia” de 1988
O vídeo ao vivo de “O Tempo Não Para“