Mentir para poder ajudar. É a situação em que se encontra os homens homossexuais na Suíça, excluídos – em nome do princípio da precaução – de doar sangue desde que surgiu a epidemia de Aids. Mas agora há vozes que se fazem ouvir para exigir o fim da interdição julgada discriminatória.
Desde 1977, na Suíça, os homosexuais homens não podem doar sangue.
(Keystone)
“Você se expôs à seguinte situação? Relações sexuais entre homens a partir de 1977”. Todos os doadores de sangue na Suíça devem antes responder por escrito a essa pergunta, que está entre 20 outras. Os que respondem “sim” não podem doar sangue.
“Meus amigos e eu mentimos várias vezes para poder doar nosso sangue”, confessa Stoyan*. O natural de Berna de 29 anos não compreende a exclusão de que é vítima. “A interdição é uma coisa boa para as pessoas que tem parceiros sexuais múltiplos, mas esse comportamento não tem nada a ver com a homossexualidade”.
12 mois d’abstinence pour un don
O exemplo mais recente é o da França. Em novembro de 2015, o país decidiu abrir a doação de sangue aos homossexuais a partir da primevera de 2016, mas sob condições. Só os homossexuais que não tiveram relações com um outro homem durante 12 meses é que poderão doar sangue (células e plasma). Eles também serão autorizados a doar plasma (parte líquida do sangue), se têm uma relação estável ou se abstiverem durante quatro meses.
As autoridades francesas pretendem assim proceder por etapas. A ministra francesa da Saúde, Marisol Tourraine, quer fazer um estudo sobre os novos doadores. “Se não há riscos, as regras que se aplicam aos homossexuais serão próximas das regras gerais um ano depois”. Ele se alegra do fim “de uma discriminação e de um tabu”, disse ela no Twitter.
Legislação por país
(swissinfo.ch)
Eles denunciam um estigma
Os militantes franceses da causa homossexual não pularam de alegria. Muitos lamentam que as condições de doação não são as mesmas para todos. SOS homofobia diz que “essa evolução não elimina o estigma dos homens gays e alimenta assim a homofobia”.
A associação francesa de defesa dos direitos dos LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) defende a adoção de “critérios de exclusão para comportamento de risco e não de população de risco”.
A organização de defesa dos homossexuais da Suíça Pink Cross tem a mesma opinião e qualifica também a exclusão de discriminatória. “O regulamento é hipócrita. Sob o pretexto de segurança, exclui-se uma parte da sociedade”, deplora o copresidente da Pink Cross Cross Mehdi Künzle.
Ele estima que Swissmedic, a autoridade responsável pela vigilância dos serviços de transfusão sanguínea e de aprovar as regras, “deve cessar de vetar toda vez que o assunto é discutido e permitir um debate fatual e sereno”.
Condição ou interdição disfarçada?
Numerosas outras vozes na Suíça reclamam a abertura da doação de sangue aos HSH. Várias intervenções parlamentares já foram depositadas nesse assunto. No outono passado, o governo respondeu à interpelação de um deputado do Partido Liberal Radical (centro-direita) e mostrou-se aberto à mudança. “O governo federal considera que todos os esforços devem ser feitos para que o comportamento de risco e a orientação sexual seja um critério de exclusão”.
O serviço de transfusão sanguínea da Cruz Vermelha Suíça (Transfusão CRS) também estuda a possibilidade de reduzir a exclusão. Uma das pistas é se inspirar do modelo francês, mesmo se este não satisfaz o diretor da organização Rudolf Schwabe. Ele qualifica de “absurdo” o período de abstinência de 12 meses imposto pela França aos homossexuais que queiram doar sangue. “Essa condição equivale a quase uma interdição, mesmo se ela é menos discriminante. Ninguém vai respeitar uma abstinência com o único objetivo de doar sangue”.
Transfusão CRS apoia critérios baseados nas práticas e não na orientação sexual dos doadores. A organização enviou um pedido de modificação do regulamento a Swissmedic que deverá decidir.
Rudolf Schwabe está otimista: Estou persuadido que conseguiremos mudar as regras até o início de 2017”.
O HIV em 2015
A Secretaria Federal de Saúde Pública (OFSP) estima que aproximadamente 500 os novos diagnósticos do VIH na Suíça em 2015 (extrapolação a partir de casos confirmados até 30 de setembro). É um número que corresponde mais ou menos ao de 2014. No que concerne aos homens tendo relações sexuais com outros homens (HSH), o número de novos diagnósticos por ano é estimado em 240. “Está claro que o risco relativo de ser infetado pelo VIH resta muito mais importante entre os HSH. De fato, quase 60% dos novos casos diagnosticados entre os homens é entre HSH, enquanto eles representam 3% dos homens ativos sexualmente”, afirma a OFSP.
Swissmedic rejeita toda discriminação
Swissmedic até agora é intratável. Duas propostas de CRS Transfusão foram recusadas e o instituto terapêutico não se deixa influenciar pela abertura adotada por outros países.
“As regras na Suíça são baseadas em situações e em dados científicos na Suíça”, afirma em posição escrita. Peter Balzli, porta-voz de Swissimerdic, nega qualquer discriminação. Citando números da Secretaria Federal de Saúde Pública, ele lembra que o instituto, ele lembra que “os HSH são quase 30 vezes mais afetados pelo HIV do que a população geral do país”.
Peter Balzli acrescenta que Swissmedic “não se recusa a discutir” e precisa que o instituto tem a obrigação de reavaliar os critérios de exclusão, sempre que houver um pedido. Uma mudança de prática poderia, por exemplo, intervir no caso de uma vacina contra o vírus HIV em que a taxa de infecção entre os HSH diminuísse consideravelmente.
Ora, insiste ele, é a tendência inversa que se verifica: na última avaliação, a cada mil pessoas domiciliadas na Suíça, três estavam infectadas pelo HIV. Essa proporção é de 100 por mil entre os HSH. “As relações sexuais entre homens continuam a ser consideradas como comportamento de risco”, conclui o porta-voz.
“A França “como modelo”
Entre os especialistas da Aids, a exclusão dos homossexuais da doação de sangue também é contestada. A professora Alexandra Calmy, responsável da unidade HIV-Aids no Hospital Universitário de Genebra, considera essa medida como discriminatória. “Existe realmente uma incidência mais alta de novos diagnósticos do HIV entre os homossexuais homens, o que não justifica a interdição”, defendendo uma avaliação baseada em comportamentos de risco.
*nome conhecido da redação
Doação de sangue na Suíça
Os homossexuais não são os únicos excluídos da doação de sangue. A interdição também vale para os consumidores de drogas por injeção, as pessoas que têm relações com parceiros múltiplos, com um parceiro (a) conhecido há pelos menos quatro meses ou com parceiros infetados pelo HIV, que sofrem de sífilis, hepatite B ou C.
Cada doação de sangue é analisada em laboratório à procura de eventuais agentes patogênicos, embora não exista segurança a 100%. A razão é a “janela diagnóstico”, ou seja, o tempo entre o momento da contaminação e da detecção de agentes patogênicos ou de anticorpos pelo laboratório.
Para o HIV, essa janela é de 12 dias. Isso significa que se uma vai doar sangue nos 12 dias que se seguem sua contaminação pelo HIV, ela coloca em risco a vida de outra pessoa porque todos os testes fracassaram durante esse período.
O último caso de transmissão do HIV por transfusão sanguínea foi em janeiro de 2001. O doador era heterossexual.
(Fonte: CRS Transfusão)
Adaptação: Claudinê Gonçalves,
swissinfo.ch