Os famosos guitarristas refletem sobre o passado em comum no Yardbirds e revelam as impressões um do outro antes de se juntarem para uma turnê
Em uma manhã gelada na primeira semana do ano novo, Eric Clapton e Jeff Beck estão largados em dois sofás na frente de uma lareira na sala da casa de campo de Beck, em Wadhurst, Inglaterra.
É uma casa em estilo Tudor, construída em 1591 e reformada para deixar suas madeiras originais aparentes por dentro e por fora. Os guitarristas se aquecem com chá e sanduíches de queijo enquanto falam e tocam música nos instrumentos da coleção de Beck .
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Quando Beck toca TBone Walker e uma parte de “Foxy Lady”, de Jimmy Hendrix, em uma Stratocaster branca, Clapton surge com notas cortantes em uma Telecaster 1954, lindamente envelhecida. Clapton, 65 anos, e Beck, 65 – dois dos guitarristas mais revolucionários e influentes do rock and roll – lançam ideias de músicas para a histórica e inédita turnê que viriam a fazer juntos: seis shows em fevereiro, em Londres, em Nova York e no Canadá.
Clapton sugere uma música de Charles Mingus, “Self-Portrait in Three Colors”, e a instrumental “Sno Cone”, do guitarrista de blues Albert Collins. Beck – cujo novo álbum, Emotion & Commotion, desvia-se de sua mistura tradicional de jazz-rock para um tratamento majestoso de guitarra solo e orquestra da ária “Nessun Dorma”, da ópera Turandot, de Giacomo Puccini – menciona o guitarrista de blues Lonnie Mack, depois toca o gancho do single “Wham!”, de Mack, lançado em 1963.
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Enquanto Beck e Clapton escolhem e conversam, outros nomes e lembranças dos anos 60, quando os dois já eram os primeiros superastros da guitarra na Grã-Bretanha mas apenas se conheciam de longe, surgem. Beck descreve a primeira vez que viu Clapton com o Cream, no Marquee, em Londres, em 1966: “Eram três caras no paraíso, fazendo uma música ótima. Eram como uma grande máquina que vem em sua direção”.
Clapton se lembra de sua conexão imediata e profunda com Hendrix, depois que tocaram juntos pela primeira vez em meados de 1966: “Senti uma segurança ao encontrar outra pessoa que era tão apaixonada pelo blues quanto eu que estava absolutamente no mesmo caminho”.
E aí, com animação, Beck e Clapton falam de sua estranha história de conexão com o Yardbirds, a banda de R&B psicodélico que foi o ponto zero do heroísmo da guitarra britânica. Em apenas seis anos, o grupo contou com Clapton, Beck e Jimmy Page como guitarristas principais, nessa ordem.
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“Eu estava sentado na casa de Jimmy“, conta Beck, explicando como substituiu Clapton na banda em 1965. “Jimmy tinha a melhor coleção de discos, e sua mãe sempre comprava o melhor equipamento estéreo. Ele me perguntou ‘O que você acha disso?’, e tocou ‘Five Long Years'” – a lenta e sensual cover de Eddie Boyd incluída no álbum do Yardbirds com Clapton, Five Live Yardbirds, de 1964. “O solo que você tocou nela”, diz Beck a Clapton, “era maravilhoso. Pensei ‘Isto é como Buddy Guy, Elmore James‘.”
“Nossa, obrigado”, Clapton responde com uma gratidão sincera.
“Então”, Beck continua, “Jimmy falou ‘Você tocaria em uma banda assim?’ Ele meio que estava me testando, não disse que havia uma vaga”.
“Qual era o envolvimento dele?”, pergunta Clapton. “A banda pediu para ele te convidar?”
“Não, a banda o convidou primeiro”, conta Beck. “Ele recusou.”
Isso é novidade para Clapton, que parece incrédulo. “Por quê?” Beck explica que Page – que finalmente entrou para o Yardbirds em 1966, tocou por pouco tempo com Beck na banda e o substituiu completamente antes de sair para formar o Led Zeppelin, em 1968 – na época era um músico de estúdio bastante requisitado e bem pago. Então, conta Beck, “Recebi a ligação.”
“Lembro a primeira vez em que vi o Jeff tocar”, diz Clapton, emendando com seu lado da história. “Foi depois de saber que ele tinha conseguido o emprego.” Olha para Beck, sorrindo. “Entrei escondido em um show – você ainda estava no Tridents, tinha o cabelo até aqui” – faz um gesto na altura do peito – “e todo aquele eco maldito em sua guitarra. Pensei ‘Será que eles sabem no que estão se metendo?'”
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“Quando entrei para o Yardbirds“, conta Beck, “só ouvia histórias na van: ‘Eric não teria feito isso, Eric não teria feito aquilo’. Falei ‘Cala a boca, o Eric não está na banda'”. Os dois dão gargalhadas. “Eles não gostavam de mim quando eu estava na banda”, afirma Clapton, a voz ficando mais baixa e atingindo um tom grave e reflexivo.
“Eu era bastante desagradável – intolerante mesmo. Não queria saber de ninguém que não conhecesse Robert Johnson.” Clapton saiu repentinamente do Yardbirds depois da sessão de gravação de seu primeiro sucesso pop, “For Your Love”, porque ofendia seu purismo de blues.
“Não, eles gostavam de você”, contesta Beck. “Não, eles não gostavam”, insiste Clapton. “Não”, Beck repete, desta vez com um sorriso afirmador. “Eles estavam maravilhados.” À sua maneira aconchegante em frente à lareira, este encontro é um momento histórico para o rock and roll. É a primeira entrevista que Clapton e Beck dão juntos.
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Na verdade, apesar de seu passado em comum no Yardbirds e sucessos paralelos posteriores – Clapton com Cream, Blind Faith, Derek and the Dominos e como artista solo, e Beck em seu Jeff Beck Group, no final dos anos 60, com um jovem Rod Stewart nos vocais, e os álbuns de platina de jazz-rock Blow by Blow, em 1975, e Wired, de 1976 -, os guitarristas só tocaram juntos pela primeira vez em 1981, em um show beneficente em Londres.
Então, suas carreiras divergiram dramaticamente. Clapton gravou álbuns pop nos anos 80 com Phil Collins e vendeu mais de 10 milhões de cópias do disco Unplugged, de 1992. Beck assumiu uma postura mais discreta de álbuns instrumentais bem recebidos pela crítica, com algumas gravações excêntricas (como uma música para a trilha sonora de A Vingança de Porky’s, de 1985) e ficou longo tempo afastado, por escolha, dos holofotes.
Desde aquela noite em 1981, Beck e Clapton já dividiram palcos uma dezena de vezes: os concertos beneficentes de superastros A.R.M.S. em Londres e nos EUA e duas apresentações no Japão, no ano passado, em que eram as atrações principais.
Estes últimos, que foram tão bem que Beck e Clapton aceitaram fazer mais, tinham sets separados de cada guitarrista com suas bandas, depois Beck e Clapton em duelos extensos em músicas como “You Need Love”, de Willie Dixon, e “Outside Woman Blues”, do Cream.
Quando pressionado sobre o motivo de ele e Beck nunca terem tocado juntos nos anos 60 e 70, Clapton responde secamente: “Porque éramos inimigos, basicamente”. É a vez de Beck parecer chocado. “Isso é novidade para mim”, diz. “Ele foi meu substituto no Yardbirds“, continua Clapton.
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“Quer dizer, não deveria ter havido um substituto. É por isso que saí: ‘Vou sair e tudo vai ruir sem mim’. Na verdade, eles melhoraram com o Jeff e fizeram mais sucesso”, Clapton nunca viu Beck ao vivo com o Yardbirds, mas diz que a melodia convulsiva e o solo de feedback manipulado de Beck no single “Shapes of Things” da banda, de 1966, “me convenceram de que ele era genuíno”.
Clapton pausa e sorri. “É engraçado falar dele com ele aqui.”
“Escolha suas palavras com cuidado”, Beck adverte, brincando.
“Pode deixar”, promete Clapton.
Na verdade, eles falam um com e sobre o outro com um divertimento fácil. Longe da estrada e fora dos holofotes de astros do rock, os guitarristas há muito tempo mantêm vida particular bastante discreta: este é um encontro raro para eles, mas, na sala de Beck, eles trocam sarcasmo e revelações sobre suas vidas notáveis no rock, como dois homens que sabem que passaram por muita coisa em comum e sempre se admiraram ao longo do caminho.
“Foi uma mistura de sentimentos”, diz Clapton, voltando a seu comentário sobre Beck, o Yardbirds e seu próprio ego ferido. “Para ser totalmente sincero, queria ser o mais crítico possível com relação a ele. Fiquei bastante magoado porque podia ver que, com o Jeff , eles estavam indo a um lugar além do que eu era capaz. O que ele fazia era muito peculiar e avançado.”
Beck fica tocado com o comentário – dá um sorriso orgulhoso -, mas rapidamente dá crédito a Clapton pela técnica fluida e pela dinâmica furiosa de blues em Five Live Yardbirds. “Ele deu um atestado de qualidade total ao Yardbirds“, diz Beck de Clapton. “Eu estava levando a tocha e indo bem, mas Eric cimentou a banda. As pessoas iam assistila só porque o Eric estava lá.” Ele olha para Clapton.
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“Foi o mesmo quando você entrou para o John Mayall’s Bluesbreakers – o público comparecia para ver você.” “Tudo o que eu fazia era representar um ideal”, alega Clapton, “que era o de que a música tinha de vir primeiro”. Beck balança a cabeça, concordando plenamente.
Mesmo com toda a distância competitiva inicial entre eles – ou pelo menos como Clapton a via -, ele e Beck têm muito em comum. Clapton é cuidadoso e confessional sobre seus dons. “Sempre fico insatisfeito”, diz sobre seus shows ao vivo. “Sempre penso ‘Esse não foi tão bom assim’.”
Beck é um sarcástico contador de histórias, mas igualmente seco sobre seu próprio valor. Ele se lembra da primeira vez em que ouviu sobre a chegada de Hendrix na Grã-Bretanha, em 1966.
“Uma mulher com quem eu não queria sair me ligou e disse: ‘Já ouviu falar de Jimi Hendrix,? Ele é melhor do que você'”, ri Beck, simulando o gesto de desligar o telefone na cara dela. Mas teve um choque de humildade quando ele e Hendrix tocaram juntos em casas noturnas londrinas como o Speakeasy: “Ele olhava para você e dizia: ‘Está com a cabeça centrada?’ e começava a tocar blues. Ele era o melhor”.
Beck e Clapton têm apenas nove meses de diferença – Geoffrey Arnold Beck nasceu em 24 de junho de 1944, e Eric Patrick Clapton em 30 de março de 1945 – e são, como Clapton diz, “ambos garotos do interior”. Clapton vive com a esposa, Melia, e suas três filhas pequenas em uma casa que comprou em 1968 e fica, segundo ele, “a cerca de 13 km de onde nasci”, na cidadezinha de Ripley, em Surrey, ao sudoeste de Londres.
“Ainda não sei se conseguiria viver em outro lugar.” Beck vem de Wallington, uma cidade no subúrbio de Londres a cerca de 40 km de sua casa atual. Seu pai era contador, e sua mãe trabalhava em uma fábrica de chocolate. “A ironia é que nenhum deles viveu para ver isto”, conta Beck, mostrando sua sala de estar, as janelas de vidro chumbado e as madeiras antigas.
A uma curta distância da porta está um celeiro longo que abriga a coleção de carros antigos de Beck, incluindo um Ford Deuce Coupe de 1932 e seus Corvettes dos anos 60, todos restaurados por ele. Beck e a esposa, Sandra, não têm filhos. “Você os conheceu”, brinca. “Eles estão no celeiro.”
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Como muitos adolescentes britânicos nos anos 50 e início dos 60, presos entre a aspereza da vida pós-guerra e a eletricidade importada do rock and roll e do blues americanos, Beck e Clapton encontraram uma fuga na guitarra.
Beck, que era um garoto quando começou a trabalhar em carros com um tio, construiu seu primeiro instrumento usando uma caixa de charutos, um porta retratos para o braço e cordas de um avião de brinquedo com rádio-controle. “Tocava naquilo por horas, fazendo barulho”, lembra alegremente.
Ele ainda ensaia por longos períodos todos os dias, quando não está em turnê ou na garagem – trabalhando em acordes, frases melódicas e exercícios de dedilhado. “Não tenho uma desculpa para não levantar e tocar”, explica Beck, “especialmente agora com grandes shows para acontecer. Tenho uma guitarra em cada sofá, encostada nas paredes, dizendo ‘Não se esqueça do que está para acontecer’. Tem sido assim há 35 anos.”
Clapton, por sua vez, “tinha um talento, encontrou-o na guitarra e o cultivou”, diz Paul Samwell-Smith, baixista e produtor do Yardbirds nas épocas de Beck e Clapton. “A guitarra era uma extensão de seus dedos. Ele fazia solos honestos e simples – eram pessoais e íntimos – enquanto Jeff sabia como pegar uma música e sacudila até sangrar. Ele é agressivo, mas não de um jeito de macho alfa”, diz. “É bastante atencioso.”
Beck e Clapton falam apaixonadamente sobre a importância da melodia em seu jeito de tocar. “Você atinge as pessoas com as notas certas, da maneira certa”, diz Beck, cuja postura de animal à espreita no palco disfarça a ação de sua mão direita, puxando a alavanca enquanto o dedinho mexe no botão de volume. “Sequências de milhões de quilômetros por hora me dão raiva.”
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“Jeff tem a capacidade de tocar 1 milhão de notas, mas ele não fazia isso”, diz Rod Stewart sobre sua época com Beck. “Ele nunca tocava sobre um vocal, colocava notas de bom gosto em volta de mim. Lembro de ir ao seu apartamento em Putney [Londres], escutar discos do Temptations e do Four Tops, por causa das melodias e dos arranjos. Tocávamos ‘Walk on By’, na voz da Dionne Warwick. Jeff também conseguia tocar isso.”
“Sempre prestei atenção em Jeff, durante toda a minha vida”, insiste Clapton. Independentemente da forma, sua expressão é dominante.” Quando questionado se há coisas que Beck consegue tocar na guitarra e ele não, Clapton imediatamente responde: “Claro. O que ele faz com a mão direita está além de qualquer coisa que já vi alguém fazer, são várias coisas ao mesmo tempo”.
E há coisas que Clapton consegue fazer e Beck não? “Não”, Beck responde rapidamente, com um timing cômico perfeito. “Ele está falando a verdade”, afirma Clapton enquanto a dupla ri. “Não, besteira”, diz Beck, ficando sério e citando os lamentos tensos, fortes de Clapton em “Telephone Blues”, lado B de um single do John Mayall’s Bluesbreakers, de 1965, como um ponto de virada no blues britânico.
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“Quando o Eric está totalmente em seu ambiente, no blues, você não consegue chegar perto disso. O timing – a decomposição das frases – é tão peculiar.” O guitarrista Derek Trucks, que toca na Allman Brothers Band e foi integrante da banda de turnê de Clapton em 2007-08, diz que há “uma linda reserva na forma como Eric toca. Você pode ouvir um de seus solos, sem saber que é ele, e saber que se trata de alguém que compõe músicas”.
Por sua vez, “Jeff é sujeira, bem na sua cara”, diz o baterista e produtor Narada Michael Walden, que trabalhou com Beck em Wired e está tocando na nova banda de turnê de Beck. “Jeff ama chocar, mas é muito nobre no material que escolhe. Ele pega as melodias mais lindas e as vira do avesso.”
Entre os exemplos em Emotion & Commotion, de Beck, que será lançado em abril, há covers de “Corpus Christi Carol”, de Jeff Buckley, e “Elegy for Dunkirk”, da trilha sonora do filme Desejo e Reparação.
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De volta à sala de Beck, a conversa tem passado pela história incrível da guitarra do rock britânico nos anos 60 – músicos como Peter Green, que substituiu Clapton na banda de Mayall e, depois, fundou o Fleetwood Mac, e Mick Taylor, pupilo de Mayall que substituiu Brian Jones nos Rolling Stones.
“Tenho certeza de que metade dos guitarristas dos Estados Unidos acha que todos morávamos em cima das mesmas lojas e tocávamos guitarra o dia inteiro”, brinca Beck. “Era uma cena pequena”, explica Clapton.
“Todos se conheciam, havia certo segredo e territorialismo também – realmente era muito pequena. Você não queria entregar muita coisa.” Beck não tem tanta certeza. “O público fazia comparações”, afirma. “No meu caso e no de Eric, simplesmente tocávamos música que nos fazia felizes, essa era a missão.”
Então, por que os dois esperaram quatro décadas para fazer uma turnê juntos? “Porque estávamos todos tentando ser os maiorais”, responde Beck, sacudindo os ombros. “Só que eu não tive o luxo de contar com músicas de sucesso como o Eric.”
“Muito engraçado”, responde Clapton.
“Não é engraçado – é a verdade”, devolve Beck. “As pessoas querem ouvir você tocar…” Ele pega a Strat e toca o riff imortal de “Layla”. Os dois riem mais uma vez.
“Poderia falar por horas”, diz Beck enquanto Clapton pega o casaco e se apronta para sair para outro compromisso. “Quando você começa a pensar naqueles dias…”
“Estou tão acostumado a tê-lo ali”, diz Clapton sobre Beck na manhã seguinte, em seu escritório em Londres.
“Se pensar em quem são os principais expoentes, ele está lá. E não há muitos mais – Jimmie Vaughan, Robert Cray, Buddy Guy, B.B. King, entre outros – para quem você simplesmente dá uma sessão rítmica e isso já é o suficiente.” E continua: “Sentei ao lado de uma pessoa na outra noite, um jovem skatista, e disse que estava fazendo esses shows com Beck. Ele achou que eu estava falando do outro Beck” – o cantor-compositor.
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“Nunca tinha ouvido falar do Jeff .” Clapton balança a cabeça, espantado. “Isso é ridículo.” Beck – o guitarrista – está certo sobre uma coisa: dos dois, Clapton é o maior astro. De frente para Clapton, na sala de estar no segundo andar de seu escritório, um sobrado no centro de Londres a meio quarteirão do rio Tamisa, mais de uma dezena de prêmios Grammy estão alinhados em prateleiras perto da lareira.
Beck estava chegando perto: ganhou seu quinto Grammy, de Rock Instrumental, por sua incandescente reinvenção de “A Day in the Life”, dos Beatles, gravada ao vivo no clube Ronnie Scott’s, de Londres, em 2007. Um DVD desses shows ganhou platina, o primeiro prêmio em vendas de Beck desde Jeff Beck with the Jan Hammer Group Live, que ganhou um disco de ouro em 1977.
Beck, naquele dia em casa, é honesto sobre sua carreira. Chama os anos 80 de “estéreis”, e os 90 foram “zero”. Essas afirmações são um exagero – nessas décadas, houve intervalos de até seis anos entre álbuns, mas ele fez turnês frequentes.
Houve shows duplos, dignos de sonho para guitarristas, com Stevie Ray Vaughan (em 1989) e Carlos Santana (em 1995). Mesmo assim, Beck admite que Clapton tinha mais obstinação. “Sempre fui absurdamente preguiçoso. Ele se levantou, eu não.” Clapton tem uma opinião diferente. “Jeff tomou um caminho muito inteligente e cuidadoso”, diz.
“Ele tinha reconhecimento suficiente para poder viver do jeito que gosta. Passei por um período no início dos anos 90 no qual fiquei atraído por coisas inadequadas, movimentos que, eu sabia desde o início, não eram o que eu devia estar fazendo, mas fiz porque me senti manipulado ou porque minha vaidade estava reagindo a algum elogio.” No entanto, ele alega, “sempre acreditei que se eu for fiel a esta parte da minha consciência – a música, ficará tudo bem.”
Os shows com Beck são o começo do que pode ser o ano mais movimentado de Clapton desde que falou abertamente, em 2001, de se aposentar das turnês e de projetos de grandes álbuns (“Sempre vou querer expressar algo”, conta, “mas não preciso fazer mais desse jeito”).
Depois de tocar com Beck, Clapton partiria para sua própria turnê pelos Estados Unidos, depois passará o verão na Europa com Steve Winwood, seu ex-colega no Blind Faith, reprisando os shows fantásticos que fizeram em Nova York em 2008.
Ao falar do processo de produção do álbum sucessor de The Road to Escondido, um Clapton animado diz: “Fiz covers de tudo o que queria tocar havia muito tempo”. Quando tocou algumas faixas para o guitarrista Ry Cooder, este disse: “Você não pode gravar isso, as pessoas se sentirão açoitadas”.
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Ao ser lembrado daquela entrevista em 2001, Clapton credita uma parte de seu ímpeto atual à mortalidade. “A aposentadoria parece atraente quando se está em pleno vigor”, sugere. “Quando você começa a decair, a necessidade de se manter na melhor forma fica mais forte.”
Ainda assim, uma boa parte da atividade do artista por volta de 2008 foi uma retrospectiva. Além de trabalhar com Beck e Winwood, Clapton voltou com força a uma parte de sua música inicial, mais popular, como fez nos shows de reunião com o Cream, em 2005, e na turnê de 2007-08, que contou com muitas músicas de seu período no Derek and the Dominos.
Embora fosse bastante amigo do falecido Duane Allman (que gravou com o Dominos), Clapton só tocou pela primeira vez com a Allman Brothers Band em março, quando se apresentou em dois shows, agora lendários, durante a temporada da banda no Beacon Theater, em Nova York.
“Foi interessante vê-lo se adaptar, tocando solos mais longos do que o esperado porque a banda se inchava ao seu redor”, diz Warren Haynes, guitarrista da Allman’s. “Ele voltou um pouco no tempo com seu ataque, o desapego geral.”
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Clapton explica a história de sua vida e sua maneira de tocar da seguinte forma: “Lembro que, há dez anos, comprei todos os álbuns que havia comprado aos 20 e poucos anos – Music from Big Pink [da The Band] , os discos do Traffic, Natty Dread [Bob Marley and the Wailers].
Queria refazer meus passos, ver se eles tinham o mesmo efeito sobre mim. É um pouco assim agora, preciso reafirmar o que me motivou. O que isso tem que me tocou? Ainda consigo encontrar isso?” Clapton se refere a “negócios inacabados” em suas relações com Beck e Winwood, especialmente este último: “Sempre me senti mal por abandonar Steve depois daquela turnê do Blind Faith [em 1969], simplesmente pulando fora, mas esse é o tipo de pessoa que eu era então. Raramente explicava meu comportamento”.
Clapton lutou contra o vício em drogas no início dos anos 70, depois contra o alcoolismo. Está sóbrio desde 1987. “E com Jeff “, diz, “o que realmente houve é que estamos ficando velhos. E se nunca demonstrássemos que gostamos um do outro? Seria estupidez, um desperdício”.
Beck e Clapton finalmente conseguiram se conhecer na turnê A.R.M.S., em 1983. A obsessão de Beck por carros ajudou. “Muitas vezes você precisa de algo que tire o foco do problema em questão”, aponta Clapton, “que é duas pessoas que ouviram que são virtuoses. Dá para dizer logo que você conhece Jeff – ele é um homem bom e aberto. Não fiquei surpreso com isso, e sim com a minha capacidade de ser aberto com ele”.
“Nunca consegui pensar que ele sentisse inveja, porque ele sempre estava fazendo coisas grandiosas”, afirma Beck, lembrando o comentário de Clapton de que os dois já foram “inimigos”. “Pare qualquer pessoa na rua e pergunte quem é Eric Clapton – ela saberá, mas muito provavelmente não saberá quem sou.
“Mas isso tudo é uma corrida de ratos”, acrescenta, com uma pitada de irritação na voz. “Você já pensou na forma como estamos fazendo essas coisas – Jeff vindo comigo, Steve aparecendo?”, Clapton pergunta a mim – e, parece, a si mesmo – quase no fim de nossa conversa em seu sobrado em Londres. “Estamos nos ajudando. Não é só porque podemos, trata-se de ‘Olhe em volta, quem precisa disso? Quem quer isso?'”.
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“Preciso disso.” É isso o que Beck consegue ao trabalhar sob o capô de um Corvette 1963 (ou ao usar um cortador de plasma em um Ford restaurado dos anos 30) e que não consegue ao tocar guitarra. “A aplicação prática”, declara, sentado no escritório de seu agente, o veterano promotor de shows Harvey Goldsmith, em Londres. “Você se dedica por um ano, depois gira a chave no contato e ele anda lindamente.”
Beck comprou seu primeiro hot rod, um T-Bucket com motor V-8, em meados dos anos 60 em Massachusetts, enquanto estava em turnê com o Yardbirds. Ele estima que já tenha reconstruído 14 veículos “do zero” desde então. Beck não corre nem customiza carros para competição oficial. “Faça-os andar bem nas ruas e acabar com os Porsches”, diz, recostando-se na cadeira com um sorriso triunfante.
Beck admite que, nos pontos baixos de sua carreira, pensou em abandonar tudo. “Houve vezes em que pensei: ‘Poderia ir trabalhar para a Roy Brizio Street Rods'”, uma conhecida loja de automóveis na área de São Francisco. “Mas sempre volto para a música. É um gancho invisível que te puxa de volta.”
Beck fala sobre seu vínculo eterno com a autodepreciação e a arrogância perfeccionista. “Era sério, mas malfeito”, diz da carga pioneira de blues pesado de seu Jeff Beck Group, de 1967 a 69, com Stewart e, no baixo, Ron Wood. “Bebíamos uma garrafa de [aperitivo] Dubonnet antes de subirmos ao palco, todas as noites, por causa do medo.”
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O baterista Vinnie Colaiuta, que trabalha com Beck há alguns anos, também tocou nas bandas de Frank Zappa no final dos anos 70 e nos 80, uma experiência que ele compara, carinhosamente, a uma mistura da [escola de música] “Juilliard com campo de treinamento militar com [o canal de humor] Comedy Central. Frank era preciso sobre como queria que as coisas soassem”. Tocar com Beck, diz, é “místico. Pouca coisa é dita. Trata-se da verdade de tocar, você tem de estar no momento”.
Beck tinha muitos heróis da guitarra antes de se tornar um deles, como Les Paul, o mestre belga do jazz Django Reinhardt e Cliff Gallup, da banda The Blue Caps, de Gene Vincent. Em Wallington, Beck ficava sentado por horas em um café esperando que alguém colocasse moedas na jukebox para poder ouvir “Whole Lotta Shakin’ Goin’ On”, de Jerry Lee Lewis, ou “Go Go Go (Down the Line)”, de Roy Orbison.
Beck viu Buddy Holly ao vivo em 1958 e estava na primeira fila de um show da primeira turnê de Vincent no Reino Unido. “Bons tempos aqueles”, Beck se maravilha. Quando era adolescente, Beck conheceu Jimmy Page. A irmã mais velha de Beck os apresentou – ela e Page frequentaram a mesma escola.
Os garotos gravavam fitas na casa de Page e continuaram amigos. No ano passado, Page fez o discurso introdutório de Beck ao Hall da Fama do Rock and Roll. Eles também quase formaram uma superbanda, em 1966, depois que Page coescreveu e tocou na primeira gravação solo de Beck, “Beck’s Bolero” (uma tempestade com guitarras estridentes e ritmo espanhol, com John Paul Jones no baixo e Keith Moon, do The Who, na bateria). “Eu e Jim pensamos ‘Só precisamos de um vocalista!'”, lembra Beck.
Em vez disso, Page transformou esse protótipo noLed Zeppeline Beck passou por uma década marcada por ótimos instintos, timing ruim e sorte pior ainda. Ouviu Rod Stewart cantar pela primeira vez em um festival pop na Inglaterra, quando saía da área dos bastidores depois de um show do Yardbirds. “
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Estava no meu carro e ouvi esse som de blues impressionante. Estacionei, enfeitiçado com aquela voz à distância, e pensei ‘Um dia…'” Só que Beck desmanchou o Jeff Beck Group original na véspera de um evento importante – o Festival de Woodstock, em 1969 – porque, conta ele sem rodeios, “havia inquietude. Eu conseguia ver o final do túnel”.
Stewart e Wood prosseguiram para singles de sucesso e shows em estádio com o Faces. Beck ficou um ano parado depois de um acidente de carro, em novembro de 1969, no qual sofreu uma concussão e uma fratura na mandíbula. “Acho que ele pode ter ficado com um pouco de inveja da amizade entre eu e Wood”, sugere Stewart, que também acredita que Beck, mesmo naquela época, suspeitava da fama, do custo de ser um astro.
“Ele não é uma pessoa do show business. O estrelato, para ele, é o reconhecimento de grandes músicos como Eric. Jeff é como um antiastro – quase irreal nos dias de hoje.” Comparando suas escolhas e sortes com as de Clapton, Beck simplesmente diz: “Alguns de nós têm asas maiores”.
No entanto, ambos continuam iguais em sua busca de coisas além da técnica ao tocar guitarra – verdade emocional e libertação mágica. “Só falamos de forma diferente”, afirma Clapton sobre seus estilos, na casa de Beck. A guitarra “é uma expressão de algo, e todos temos formas diferentes de dizer isso.” Beck, inevitavelmente, faz uma metáfora com carros. “O que acontece é que sou um motorista louco, que bate o carro. E ele” – Beck olha para Clapton – “é uma pessoa que calcula a corrida e chega intacto”.
“É verdade”, Clapton admite, rindo. No Natal, conta, alguém lhe deu um autorama de brinquedo. “Montei a pista, brinquei com todo mundo e ganhei todas as corridas, porque descobri quão rápido dá para ir sem bater. Nem estou interessado no outro carro, não quero vencer, só quero chegar ao final.”
Enquanto Clapton pega o casaco e Beck se levanta para a despedida e os abraços, eles falam entusiasmadamente sobre ideias para músicas e ensaios para a turnê, até a porta da casa de Beck. “Jeff é tão fluente e lírico”, Clapton diz mais tarde, “que isso abre em mim uma porta que quer fazer o mesmo. Ele me inspira a tocar melhor, a ir mais longe”.
“Tocar direito!”, grita Beck com uma risada envergonhada ao ser indagado, no final da entrevista no escritório, sobre o que ainda precisa atingir como herói da guitarra. “Eu me ouço tocar sozinho, no estúdio no andar de cima de minha casa, e penso ‘Se conseguisse fazer isso na frente das pessoas…'”
Texto originalmente publicado na edição 43 da Rolling Stone Brasil
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