Peça-chave do culto aos anos 1980, Steven Spielberg volta a um passado aconchegante e encara um futuro sombrio em Jogador Nº 1

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Peça-chave do culto aos anos 1980, Steven Spielberg volta a um passado aconchegante e encara um futuro sombrio em Jogador Nº 1


“Em um certo momento, pensei: ‘Talvez outra pessoa devesse fazer esse filme, porque aí vai ter muito mais a minha presença nele do que se eu dirigi-lo”, diz o diretor

por Stella Rodrigues

Para qualquer fã de entretenimento, ter a oportunidade de debater a cultura pop dos anos 1980 com Steven Spielberg é mais ou menos como um católico poder conversar com Deus sobre a criação da Terra. Spielberg está impregnado de forma irremediável no tecido – colorido, possivelmente preenchido por ombreiras – desta que atualmente é a década mais celebrada em termos de produção artística. Seja como diretor – Os Caçadores da Arca Perdida (1981), E.T. – O Extraterrestre (1982) –, roteirista – Os Goonies (1985) –, seja produtor – De Volta Para o Futuro (1985) –, ele deixou uma marca indelével naquela era. Apesar de essa palavra andar bastante surrada, neste caso não é exagero algum cravar que se trata de um gênio.

Corta para fevereiro de 2018 e para o senhor gentil, humilde e brincalhão que está sentado diante de jornalistas em uma sala de reuniões dos estúdios da Warner Bros., em Burbank, na Califórnia. Não são nem 9h e ele, com 71 anos e provavelmente o nome mais conhecido do cinema mundial, já estava ali há algumas horas gravando material promocional para Jogador Nº 1, que chega aos cinemas em 29 de março e é ao mesmo tempo sua mais nova empreitada e uma das mais dedicadas homenagens a Spielberg de que se tem notícia. O filme, baseado no livro de mesmo nome escrito por Ernest Cline, é uma carta de amor à infância de todo mundo que cresceu jogando em arcades e se deliciando com a ternura dos filmes assinados pelo cineasta. Cline é uma dessas pessoas. Na trama, estamos em 2044, em um mundo em frangalhos, sem as necessidades básicas. As pessoas vivem uma vida sofrida, da qual só conseguem escapar com a ajuda do OASIS, um universo de realidade virtual complexo criado por James Halliday (Mark Rylance). Dentro do OASIS, eles viram jogadores e vivem uma existência totalmente diferente. O sujeito pode ser um coitado na vida real, mas um herói dentro do jogo, no qual enfrenta desafios do tipo reviver os obstáculos encarados pelos protagonistas de Curtindo a Vida Adoidado (1986) ou Blade Runner – O Caçador de Androides (1982), por exemplo. Quando Halliday morre, em uma sacada que aperfeiçoa a excentricidade de Willy Wonka (A Fantástica Fábrica de Chocolate), ele deixa sua fortuna para o primeiro que achar os tesouros que escondeu no OASIS. É dada a largada para uma corrida maluca através da qual conhecemos melhor o jovem herói Wade Watts/Parzival (Tye Sheridan) e seus quatro coprotagonistas, Samantha/Art3mis (Olivia Cook), Aech (Lena Waithe), Daito (Win Morisaki) e Shoto (Philip Zhao). Além de enfrentarem uns aos outros, eles terão que superar o vilão, Nolan Sorrento (Ben Mendelsohn), que quer o controle do OASIS para si, ou melhor, para a empresa que representa, a multinacional Innovative Online Industries (IOI).

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Antes mesmo de o livro estar terminado, os direitos para transformá-lo em um filme já tinham sido comprados e Spielberg – cuja obra é referenciada e reverenciada intensamente em toda a história – estava escalado para dirigir. “Enquanto estava lendo destacando partes do texto, dizia constantemente ‘Eu não posso fazer isso, isso também não, não posso fazer aquelas quatro coisas da página 130, nem da página 325’”, ri Spielberg, lembrando como tramou a adaptação da obra e o cuidado que teve para não ser muito autorreferente. “Em um certo momento, pensei: ‘Talvez outra pessoa devesse fazer esse filme, porque aí vai ter muito mais a minha presença nele do que se eu dirigi-lo”, brinca.

A verdade é que não teria ninguém mais perfeito para fazer esse longa. Não só pela intimidade com o tópico mas também devido aos desafios técnicos que ele impôs. Algumas tecnologias de CGI chegaram a ser integralmente inventadas nos bastidores só para conseguir traduzir fielmente a visão que o diretor tinha para certas cenas. O cineasta afirma que esse foi um dos três trabalhos mais complicados que fez na vida (“Nem eu sei explicar direito o motivo, já tentei e sempre me enrolo. Não consigo colocar em palavras, mas foi muito difícil”). “Me comprometi a fazer Jogador Nº 1 há três anos. Fazia muito, muito tempo que eu não demorava três anos para concluir um filme. Muito desse tempo inicial foi gasto para conseguirmos fazer certo. Um mês atrás, ainda estávamos negociando alguns “easter eggs” que inserimos no cenário. Conseguimos a cooperação de por volta de 80% dos detentores dos direitos, só não tivemos sucesso com a Walt Disney Company. Não conseguimos colocar nada do Star Wars”, lamenta.

“O que me cativou foi a história de dois mundos”, argumenta Spielberg para justificar por que, no fim das contas, não poderia abrir mão do projeto. “O fato de você poder criar ‘outro você’ e viver na pele de uma espécie completamente diferente, ou gênero, ou personagem. Dá para viver 20 horas por dia, durante os sete dias da semana, em outra vida, em um universo paralelo de nossa própria criação. Quando li o livro do Ernest pela primeira vez, pensei que essa é uma realidade alternativa que não está tão distante do que estamos vivendo com a realidade virtual”, explica. “Você quase se sente mais confortável no outro mundo, e até se decepciona um pouco quando volta para o seu lugar. E, no mais, eu acho que essa é uma enorme história de aventura, mas também um alerta sobre quanto tempo nós realmente devemos passar longe daqueles que amamos e de nossas responsabilidades.”

Dada a amplitude do playground que tinha onde brincar, Spielberg teve que fazer escolhas, muitas escolhas. Diversas sequências do livro foram eliminadas na adaptação e, mais do que isso, ele precisava selecionar a música oitentista que melhor contaria a história. Para isso, adotou uma estratégia interessante. “Deixei a cargo da minha equipe de edição, mais especificamente Michael Kahn, que é meu editor de longa data e tem feito tudo desde Contatos Imediatos do Terceiro Grau (1977), e Sarah Broshar, que tem trabalhado conosco desde As Aventuras de Tintim (2011) – eles que escolheram, mas com a colaboração do Ernie Cline. Ernie ficava mandando sugestões de faixas por meio de Zak Penn, que escreveu o roteiro. Eles separavam as músicas e me mostravam, dando opiniões sobre cada uma. Estava muito interessado em saber a opinião deles, porque a Sarah é bem jovem, tem 30 e poucos anos. Mike tem 85 e eu fiz 71. A Sarah fazia escolhas baseadas em músicas de que ela gostava, mas ela não estava familiarizada com nada. Eu e Mike conhecíamos todas as músicas, mas a Sarah ia só no que soava melhor.”

Nessa mistura fantástica entre passado idílico e futuro distópico, não há como não refletir sobre a natureza invariavelmente doce das memórias que temos de três décadas atrás e a perspectiva cinza que o cinema dos últimos tempos apresentou em relação à realidade que viveremos, neste caso, para daqui a menos de três décadas. “Eu sou otimista em relação à nossa realidade e ao nosso futuro”, afirma Spielberg, contrariando o que ele desenhou nas cenas do longa. “Este filme não necessariamente representa aquilo em que acredito, o que acho que o futuro será. Como era para ser um faz de conta, eu fiz de conta junto a todo mundo.”



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